Com dificuldade para conseguir emprego e acesso escasso aos serviços de saúde, a população migrante costuma pagar um alto preço por atravessar a crise de COVID-19 longe de seu país de origem. A situação de muitos venezuelanos residentes no Peru é uma amostra do que ocorre no continente.
Para Erik Karim (34) não sobrou nada além optar por ficar desempregado ou sobrecarregado de trabalho. No contexto da pandemia por COVID-19, esse é o destino dele e de boa parte de seus compatriotas que fizeram do Peru o segundo país da América Latina com maior população de migrantes venezuelanos (mais de 1.040.000).
Erik tem feito de tudo para sobreviver. De um momento para outro, precisou vender seu carro, deixar sua casa e seu trabalho como bombeiro profissional, e se separar de sua família. Após cinco dias de viagem por terra de sua Tucaní natal, no estado de Mérida, chegou a Lima. “Com minha esposa, tomamos a decisão de que eu viria porque em algum momento não teríamos nem como sair”, lembra
Ser migrante em uma pandemia, uma realidade marcada pelos desafios
A crise humanitária na Venezuela forçou milhões de venezuelanos a buscar refúgio em países da região. Desesperados para conseguir emprego, tiveram que aceitar condições laborais adversas, sem seguridade social e, em alguns casos, sem remuneração justa. “Normalmente tenho que trabalhar de 12 a 13 horas por dia”, conta Erik, que de manhã trabalha para aplicativos de tele-entrega e, à tarde, em uma pizzaria. Ao amanhecer, antes de sair de sua casa no distrito de Vila María do Triunfo, compartilha algumas horas com sua esposa Rosani (38) e sua filha Angelly (15). Quando retorna, ainda cansado pela longa jornada, se dedica a empreender um negócio familiar de sandálias artesanais.
O salário de Erik como entregador é de uns 1.500 soles mensais (cerca de US$ 410). Em média, isso é um pouco mais do que ganham os quase 46.000 entregadores que há em Lima. A pandemia ofereceu uma oportunidade de mercado que coincide com as necessidades dos migrantes desesperados. Segundo estimativas sobre os dados da Pesquisa Permanente de Emprego, em menos de um ano o trabalho no setor aumentou 98%.
Como muitos de seus colegas, Erik precisa ser eficiente e não dar trégua. A chave é manter o aplicativo ativo e aceitar pedidos, chova ou faça sol. Só assim poderá se manter firme, receber mais encomendas e ganhar 60 centavos de sol por quilômetro percorrido. Mas essa dinâmica pode ser asfixiante e, por isso, prefere dedicar mais horas à pizzaria. Entre ambos os empregos, a renda continua sendo insuficiente. Sua esposa Rosani trabalha em uma casa de repouso para idosos, onde os sacrifícios são grandes: precisa ficar quatro ou cinco dias seguidos no lugar. Somente assim a família consegue cobrir os gastos do pequeno apartamento que alugam no sul da cidade.
Em março do ano passado, durante uma visita à Venezuela, Erik contraiu COVID-19. Tinha viajado para ver seus pais e apenas três dias depois de chegar a pandemia eclodiu e fecharam a fronteira. “Precisei ficar em quarentena lá”, comenta. Recuperado e sem economias, voltou ao Peru em outubro de 2020. Não queria se expor outra vez como entregador, mas não lhe restaram opções. Apenas em dezembro conseguiu reativar sua conta em um aplicativo e começou a trabalhar paralelamente na pizzaria.
O medo de um novo contágio, no entanto, não o abandona. “Sempre há esse temor pelo contato com outras pessoas, mas só me resta me cuidar”, reflete. Sua única proteção é uma máscara, um pouco de álcool e sua fé de que tudo ficará bem. Mas o vírus continua sendo um risco permanente: as campanhas de controle realizadas pelo Ministério da Saúde e alguns municípios de Lima mostraram que entre 30 e 40% dos entregadores examinados estavam infectados.
Devido a sua condição de cidadão estrangeiro, Erik não conta com o Seguro Integral de Saúde (SIS). Em teoria, a permissão de permanência temporária permite que ele tenha acesso a direitos básicos, mas ele ainda não conseguiu concluir os procedimentos. Isso o inclui nos 91,5% de migrantes venezuelanos sem seguro de saúde . Para os venezuelanos com status irregular, o panorama é ainda menos alentador. Um estudo do Center for Global Development and Refugees International adverte que estão excluídos do sistema de saúde. Inclusive aqueles com situação regularizada podem ter problemas de acesso à atenção primária devido “ao medo de ameaças das autoridades e à falta de conhecimento entre os funcionários dos hospitais”, assinala o relatório.
“Gostaria de ter acesso ao SIS”, diz Erik, atento à segunda onda de contágios. Se antes acreditava que os jovens não corriam riscos com a COVID-19, agora já não está tão seguro. Embora a pandemia e os desafios laborais se imponham, sabe que o cenário poderia ser pior. “Pelo menos tenho trabalho”, comenta, se animando. E não exagera: segundo a Defensoria do Povo, 89% dos venezuelanos residentes perderam seu emprego como resultado direto da pandemia. A queda de 12% do crescimento econômico do Peru durante 2020 terminou sendo mais dura para as populações mais vulneráveis.
“Se a pandemia não te afeta pelo lado da saúde, te afeta no econômico e na parte psicológica”, declara Erik. A bordo de sua moto, prefere se concentrar no pedido seguinte. Não quer pensar na economia nem na informalidade. Contorna uma avenida, dobra uma rua e estaciona para entregar uma pizza ainda quente. Apesar de tudo, sente-se afortunado. Tem trabalho, sua família unida e sobreviveu ao coronavírus. Talvez algum dia possa realizar seu sonho de voltar a Tucaní.