Por meio do Fundo Rotatório, 41 países têm acesso a vacinas seguras e de qualidade com valor 75% mais barato do que se comprassem por conta própria. Em uma região pioneira na eliminação de doenças como varíola, poliomielite e sarampo, o Fundo cumpre um papel que vai muito além da compra de vacinas.
O processo parece simples. Natalia Vélez chega com a filha Luciana, de 7 anos, a um centro de vacinação no município de Sogamoso, no centro-oeste do departamento de Boyacá, Colômbia. Luciana está nervosa, mas sua mãe a acalma. Quando chega a vez delas a enfermeira conta uma piada para fazê-las sorrir. Ao pegar a vacina e encher a seringa com seu líquido, a profissional de saúde explica o que vai fazer. Por fim, aplica na menina uma injeção que prevenirá uma doença grave, mas que graças à imunização está sob controle.
Por trás do ato quase rotineiro de vacinação, como no caso de Luciana, há um complexo sistema que permite que milhões de doses cheguem aos braços dos habitantes de 41 países que têm acesso às vacinas pelo Fundo Rotatório da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS). Trata-se de um mecanismo que permite aos países comprar vacinas seguras e de qualidade a um preço melhor do que se comprassem por conta própria. Dessa forma, a OPAS promove a equidade que garante melhores resultados de saúde para todas as pessoas.
Este organismo, que começou a atuar em 1979 como um mecanismo financeiro e um fundo comum de capital, comprou em 2022 mais de 400 milhões de vacinas, seringas e outros insumos para imunização e assessorou dezenas de países em diversos temas relacionados à vacinação na América do Sul, Caribe, América Central e América do Norte.
“Acredito muito na vacinação. Considero algo muito importante hoje, porque é uma forma de prevenir várias doenças”, disse Natália, que acompanhou a filha para receber todas as doses necessárias e agora espera para imunizá-la contra o Papilomavírus Humano, doença que a afetou de perto após a morte de uma amiga por câncer de colo do útero causado pelo HPV.
Graças a um sistema de acesso equitativo às vacinas, como o Fundo Rotatório (FR), as Américas são uma região pioneira na eliminação de doenças imunopreveníveis como a varíola, a poliomielite e o sarampo.
"O Fundo Rotatório tem sido um grande propulsor da imunização na região das Américas. Em seus 43 anos de atuação, não só cresceu em suas compras de vacinas e contribuiu para a introdução de novos produtos, como também desempenhou um papel fundamental com aconselhamento e orientação aos países sobre como implementar seus planos de imunização”, comentou Santiago Cornejo, diretor executivo do Programa Especial de Fundos Rotatórios Regionais da OPAS.
Por que os países compram vacinas por meio do Fundo?
“O Fundo Rotatório é uma ferramenta essencial na aquisição de vacinas para a América Latina e o Caribe”, destacou a ministra da Saúde da Argentina, Carla Vizzotti. "A visão e estratégia do Fundo Rotatório é muito importantes. São vacinas de qualidade, pré-qualificadas pela Organização Mundial da Saúde e têm um ponto muito relevante, que é o preço mínimo", acrescentou.
A economia de escala permite que países menores comprem vacinas que seriam mais caras se adquiridas de forma independente. Ao fazer isso em conjunto com todo o sistema pan-americano, muito dinheiro é economizado.
Segundo dados processados pelo Fundo Rotatório, tendo como referência as 13 vacinas de rotina mais utilizadas na Região, os países teriam pagado 75% a mais por suas compras de vacinas entre 2018 e 2022 se tivesse sido adquiridas por fora do Fundo.
Além disso, o Fundo Rotatório não apenas facilita a compra, mas também realiza cooperação técnica junto aos países para fortalecer seus sistemas de imunização. “Mais do que um mecanismo de compra competitivo e em grande escala, o Fundo tem uma perspectiva de saúde e solidariedade”, acrescentou Vizzotti.
Por que esse mecanismo promove a equidade?
O Fundo Rotatório tem sido fundamental para melhorar a cobertura de vacinação nas Américas, uma vez que permite a todos os países pagarem o mesmo valor por cada dose, independentemente de seu tamanho. Para os países pequenos, por exemplo, seria difícil conseguir comprar muitas vacinas que hoje são adquiridas pelo mecanismo. “Temos um preço único para todos os países, ou seja, não importa se um país compra 500 ou um milhão de doses. O preço é o mesmo”, disse Oscar Vargas, especialista do Fundo Rotatório
Para Vizzotti, é importante que os países maiores continuem comprando por meio do Fundo, pois assim todos podem garantir que os preços continuem caindo, inclusive nas próprias licitações nacionais. “A coisa mais importante é sustentar esse círculo virtuoso de solidariedade que alcançamos por ter uma escala maior. Temos mais poder de negociação para continuar baixando os preços”, afirmou.
A equidade não é alcançada apenas pela presença de grandes países garantindo volume, mas também porque os regulamentos do Fundo Rotatório garantem que os países possam comprar vacinas para toda a população-alvo por meio de seus programas nacionais e pelo mesmo preço para todos, explicou Socorro Gross, representante da OPAS no Brasil que possui quase 30 anos de trabalho na Organização. “Não existe uma separação daqueles que têm dinheiro e vão tomar a vacina e daqueles que não têm dinheiro e não vão tomá-la", acrescentou a representante. E isso também gera equidade dentro dos países grandes, já que “90% das pessoas pobres da região estão em países de média e alta renda" e não apenas em países pobres e pequenos.
Para Gross, o Fundo não é apenas um exemplo de solidariedade, mas também de integração e contribui para o "encadeamento de produtos" da região para a região, já que existem vacinas que são produzidas na América Latina e chegam ao restante dos países por meio do Fundo Rotatório. As vacinas para febre amarela e influenza, por exemplo, são fabricadas no Brasil. Isso, segundo a representante, é algo que promove a independência e a soberania dos países, pois a região das Américas fica menos dependente de países produtores em outras regiões.
Como funciona o financiamento oferecido pela OPAS aos países?
Os países que adquirirem vacinas por meio do Fundo Rotatório têm acesso ao financiamento sem juros por 60 dias após o recebimento das doses. Como o Fundo consegue o dinheiro para viabilizar esse financiamento? Para cada dose vendida por meio desse sistema, os países pagam um adicional de 4,25%. Uma parte desse dinheiro, 2,5% de cada dose, vai para um fundo de capital que os países podem utilizar para essa linha de crédito para vacinas. Os 1,75% restantes são usados para pagar as despesas administrativas do mecanismo. Mas os benefícios não são apenas financeiros ou econômicos.
O Fundo também oferece cooperação que inclui análise de mercado e planejamento de demanda, assessoramento em logística, processos de aquisição, comunicação estratégica e apoio técnico em temas como redes de frio, qualidade e pré-qualificação de vacinas.
Como é garantida a qualidade?
Os fornecedores que vão à licitação devem apresentar duas propostas: uma técnica e outra de preço. “Primeiro é feita a avaliação técnica e de qualidade. Se (o fornecedor) for aprovado, pode ser considerado para uma adjudicação”, explicou Vargas. As vacinas devem estar pré-qualificadas pela OMS e atender aos requisitos técnicos de qualidade estabelecidos. “O Fundo Rotatório garante que o que o país está comprando e colocando à disposição de toda a população tenha a qualidade necessária”, disse Gross.
Como são as licitações?
O Fundo Rotatório da OPAS realiza processos licitatórios abertos e internacionais entre os fabricantes das vacinas que compra para os países. A OPAS decide comprar a oferta com o melhor preço, embora em muitos casos, para garantir o abastecimento, faça acordos com mais de um fabricante, explicou Vargas.
Como a transparência é assegurada?
Com uma abertura de licitação que conta com a participação de todos os fabricantes que fizeram ofertas, afirmou Vargas. Uma vez concluído o processo, os fabricantes que não receberam a adjudicação são notificados de que não foram considerados. Os países não intervêm nesse processo porque delegam a responsabilidade à OPAS. Outro elemento distintivo do Fundo Rotatório que contribui para a transparência é o fato de os preços obtidos nessas negociações serem publicados no site da OPAS.
O Fundo Rotatório enfrenta vários desafios, como obter preços baixos e sustentáveis para as vacinas, diversificar as fontes de abastecimento e se preparar para futuras pandemias. Também deve ser protegido de "uma parte da indústria que vê o Fundo Rotatório como uma limitação para seus lucros", segundo Gross, e que "não pode entrar na região das Américas, como entrou em outras regiões do mundo, para implementar um preço "diferenciado per capita, algo que seria terrível". Para isso, a comunicação e o apoio do público são importantes, de acordo com a representante da OPAS no Brasil.
Outro aspecto sugerido pela ministra argentina Carla Vizzotti é trabalhar para simplificar os esquemas de vacinação. "É importante diminuir as injeções para evitar muitas consultas e que isso diminua a adesão."
Um dos pontos fortes do Fundo Rotatório ao comprar vacinas de 41 países é poder enviar sinais mais fortes à indústria sobre as necessidades dos programas nacionais de vacinação, explicou Cornejo. Uma dessas necessidades, segundo Vizzoti, é tentar conseguir mais imunizações a partir de uma única dose.
Tornar o processo mais simples pode ajudar a manter os altos padrões de vacinação que fizeram das Américas uma região líder em vacinação. Mas se não forem tomadas medidas para simplificar os processos e ao mesmo tempo combater a desinformação, garante a ministra argentina, esses avanços podem estar em risco já que, com as doenças desaparecendo, as gerações mais novas não percebem o risco de não serem vacinadas. Por isso, para Vizzotti, a certa altura, “as vacinas são vítimas de seus próprios êxitos”.