São Paulo, 30 de abril de 2024 - Entre os dias 19 e 22 de março de 2024, na Índia, a Organização Mundial da Saúde (OMS) reuniu especialistas e técnicos para o planejamento das atividades do seu novo Centro Global de Medicina Tradicional (GTMC, na sigla em inglês). Com lançamento previsto para 2025, uma nova Biblioteca Global especializada no tema está sendo desenvolvida pela BIREME, tendo como ponto de partida a experiência acumulada com a Biblioteca Virtual de Saúde em Medicinas Tradicionais, Complementares e Integrativas e a Rede MTCI Américas.
Saiba mais na entrevista com o diretor da BIREME, Dr. João Paulo Souza.
Recentemente a Organização Mundial da Saúde coordenou duas reuniões para dar seguimento aos trabalhos estabelecidos como prioridade para o Centro Global da OMS em Medicina Tradicional. Realizada em março de 2024, essa missão tinha como objetivo “traduzir a agenda de ação informada por evidências da Declaração de Gujarat em implementação e impacto”. Como participante destes eventos, pode nos dar mais detalhes sobre o contexto do novo Centro e seus projetos prioritários?
A primeira parte da missão aconteceu em Nova Delhi e foi uma reunião de discussão com identificação de linhas gerais de ação, principalmente àquelas relativas ao primeiro ano de trabalho do novo Centro, que está sendo instalado em Jamnagar. Então, nessa primeira etapa, nós estávamos com um grupo grande de peritos e experts da comunidade das medicinas tradicionais e conhecimentos indígenas, ou conhecimentos tradicionais de pessoas indígenas. Tivemos sessões específicas para tratar de grandes temas, como por exemplo: biodiversidade, sustentabilidade e saúde planetária, proteção de direitos sobre propriedade intelectual, codificação da informação para CID-11, e outras.
Naqueles dias, ainda tratando de aspectos estruturais do novo Centro, também trabalhamos com a definição e algumas especificações para o desenvolvimento do que então estava sendo chamado de “repositório global”, ou um “banco de conhecimento” ou biblioteca. Então, discutimos sobre o conteúdo, estratégias para implementação e desafios. Falamos sobre padrões, critérios e metodologias para a inclusão de informação baseada em evidências, e avaliamos requisitos para hospedagem em plataformas digitais. Participaram comigo dessas discussões, Verônica Abdala, gerente de Produtos e Serviços de Informação da BIREME, e Jonas Gonseth-Garcia, assessor de Qualidade em Serviços e Sistemas de saúde e ponto focal em Medicina Tradicional na OPAS/HSS.
Como a OMS está trabalhando para reconhecer práticas seguras e efetivas que tenham sido desenvolvidas em paradigma diferente do modelo biomédico, mais convencional na saúde pública?
Eu vou falar aqui da minha percepção de como se está desenvolvendo esse trabalho, mais do que fazer uma fala em nome da organização. Vejo que grande parte do trabalho está relacionada às discussões epistêmicas que conformam e sustentam os diferentes modelos de produção do conhecimento sobre cuidados em saúde. Então, tivemos lá um trabalho grande relacionado a biodiversidade, à propriedade intelectual, buscando entender como assegurar que, por exemplo, os conhecimentos tradicionais das comunidades gerem benefícios para essas comunidades, e não sejam somente ‘extraídos’ dessas comunidades para uso por uma determinada indústria. Existe uma preocupação muito grande em desenvolver garantias para as comunidades que detém o conhecimento tradicional, e que esse conhecimento possa ser também uma via de desenvolvimento econômico dessas comunidades. Outra questão bastante discutida foi a integração, registro, e avaliação do uso das práticas tradicionais aos sistemas nacionais de saúde.
Isso porque uma das ideias que animam a instalação do GTMC da OMS é justamente reconhecer práticas que contribuam positivamente para o processo de produção de saúde, práticas que possam ser, de alguma forma, consideradas efetivas, seguras e culturalmente apropriadas. Uma vez que os sistemas de saúde que operam dentro de um paradigma biomédico euro-ocidental, digamos assim, possuem limites e tampouco resolvem todas as necessidades de cura e de saúde de nossas populações. Vamos lembrar que aproximadamente 80% das pessoas em âmbito global fazem algum uso de recursos naturais para promoverem sua saúde ou aliviarem problemas de saúde, e que uma boa parte, senão a maior parte dos medicamentos alopáticos atuais, tem origem em recursos naturais. A ideia desse novo Centro especializado da OMS é contribuir para a identificação de um caminho que permita a maior integração de práticas tradicionais de saúde nos sistemas de saúde, principalmente aquelas que sejam seguras e efetivas e ao mesmo tempo culturalmente relevantes e apropriadas.
Como os diferentes modelos de produção do conhecimento influenciam a integração dos saberes tradicionais e indígenas às evidências científicas?
Essa foi uma boa parte da discussão que tivemos lá, inclusive remonta aos modelos epistemológicos, porque a abordagem epistêmica que a gente usa na ciência dita ‘ocidental’, ela é muito derivada de ideias que se desenvolveram no XVIII, principalmente o empirismo, o racionalismo e o ceticismo. O modelo epistêmico que sustenta a medicina baseada em evidência, por exemplo, é em grande parte derivado dessas correntes, em especial o empirismo. Mas esse modelo empírico tem algumas limitações que precisam ser consideradas, principalmente a dificuldade de lidar com a complexidade da “vida real”, a heterogeneidade das pessoas, contextos, intervenções e mesmo das avaliações, e a dificuldade de eliminar os efeitos residuais de confundimento. São limitações que muitas vezes dificultam a implementação do conhecimento científico-empírico em situações complexas da vida real.
Outro ponto a considerar é que muitas vezes as intervenções tradicionais são super individualizadas, ou então são super contextualizadas. Ou seja, há muitas vezes dificuldade em se realizar grandes avaliações padronizadas e descontextualizadas, incompatibilizando muitas vezes o modelo empírico convencional nessas situações. Então uma parte da discussão é como gerar esse tipo de evidência que seja válida, metodologicamente falando. Dentro do próprio paradigma científico euro-ocidental tem surgido inovações, como a ciência da complexidade e a avaliação de intervenções complexas, mas existem modelos epistêmicos emergentes, originados no Sul Global, que precisam ser considerados. Mais do que isso, temos abordagens epistêmicas integrativas, como os encontros de saberes desenvolvidos pelo Prof. José Jorge de Carvalho, por exemplo, que buscam possibilitar um diálogo entre essas ciências tradicionais e aquilo que seriam as ciências euro-ocidentais.
Outra preocupação muito grande que repercutiu nas discussões que aconteceram na Índia tinha a ver com estratégias para evitar um neocolonialismo do conhecimento. Como podemos assegurar que, mesmo bem-intencionados, não venhamos inadvertidamente favorecer uma abordagem extrativista e colonial. Para citar um exemplo, houve uma discussão muito interessante que aconteceu sobre “Ciência Aberta”. Aqui na BIREME, a gente promove e fala o tempo todo de ciência aberta, porque de certa forma é um modelo que facilita a transparência do processo de formação do conhecimento e a democratização do acesso a esse conhecimento. Mas analisada por outro ângulo, uma abordagem aberta e transparente em relação ao conhecimento tradicional nem sempre pode estar no melhor interesse das comunidades que detém o conhecimento tradicional.
Imagine-se uma situação em que a publicação de uma determinada “garrafada” ou de uma determinada combinação de ervas possa permitir a identificação de um novo recurso terapêutico passível de ser industrializado. Sem o cuidado necessário, esse conhecimento pode ser desenvolvido e patenteado pela indústria e retornar devidamente “embalado” para essas mesmas comunidades. Exemplos desse modelo de interação colonial entre comunidades originárias, conhecimentos tradicionais e o complexo econômico-industrial da saúde são inúmeros. Como garantir que as comunidades originárias que vêm guardando esse conhecimento e mantendo a biodiversidade necessária para desenvolver esse recurso terapêutico possam se beneficiar do uso desse conhecimento? Então foi interessante ver limites até mesmo para a “ciência aberta”. Desenvolver uma proposta de ciência aberta com salvaguardas para as comunidades parece ser ao mesmo tempo um desafio, mas algo bastante importante.
Quais foram as principais definições para esse projeto da OMS que visa sistematizar todo esse conhecimento em uma Biblioteca Global de Medicinas Tradicionais?
De uma forma assim estruturante para toda essa discussão está a biblioteca. E essa foi a razão principal da gente ter ido lá, para apoiar o desenvolvimento dessa plataforma que vai organizar toda a base de evidências que o GTMC/WHO vai sistematizar. Na primeira parte da missão, coordenamos grupos focais com os especialistas para discutir o projeto da biblioteca, que são potenciais usuários, definindo visão, necessidades de usuários, e outras especificações de alto nível.
Então, a BIREME foi comissionada a desenvolver uma Biblioteca Global de Medicina Tradicional, que tem um âmbito global e será constituída de seis portais regionais, um para cada região da OMS, além de perfis de países e bibliotecas nacionais. Nós já temos um portal que é o das Américas, a BVS MTCI Américas, que já está 95% pronto, vamos dizer assim, para esse modelo que a gente quer desenvolver globalmente. Então faremos ainda uma pequena adaptação para que esse modelo chegue no que a gente quer.
A BVS MTCI Américas vai ser o modelo das bibliotecas regionais, então teremos uma Biblioteca Global de Medicina Tradicional, e seis instâncias regionais: a BVS MTCI Américas, que não mudará de nome; e mais a Biblioteca Africana de Medicinas Tradicionais, a Biblioteca Europeia de Medicinas Tradicionais, Biblioteca do Oriente Médio de Medicinas Tradicionais, Biblioteca do Sudeste Asiático de Medicinas Tradicionais, e Biblioteca do Pacífico de Medicinas Tradicionais. Os nomes são todos provisórios ainda. Além disso, vamos desenvolver também algumas instâncias de bibliotecas nacionais, para que possam servir de modelo. Estamos pactuando o desenvolvimento de modelos de bibliotecas nacionais para os ministérios da saúde dos países, em colaboração com os escritórios locais da OPAS no nosso caso e da OMS globalmente.
E o nosso cronograma é o seguinte: de abril até outubro de 2024, vamos desenvolver e apresentar um produto mínimo viável da Biblioteca Global; e de outubro de 2024 até março 2025 devemos ter a versão beta disponível para uso, mas ainda em desenvolvimento. Tudo isso para ter a entrega final já testada, revisada e pronta na próxima Cúpula Global da OMS, que está agendada para o segundo semestre de 2025.
O que significa para a BIREME ter mais um projeto global em seu portfólio, especialmente, uma Biblioteca Global que facilitará o acesso de todos os povos aos conhecimentos e medicinas indígenas e tradicionais?
Para a BIREME, e acho que até para a OPAS, é uma distinção a gente ter a missão de desenvolver essa biblioteca global. É um reconhecimento da expertise de décadas de um trabalho para construção de bibliotecas digitais. E particularmente nas medicinas tradicionais, é um reconhecimento do esforço da BIREME e da OPAS em estruturar uma rede, uma biblioteca de MTCI que agora está servindo de modelo para o restante do mundo. Acho que isso é motivo de orgulho porque a gente vai desenvolver as bibliotecas tanto a Global quanto as das outras regiões em cima da experiência das Américas. É uma importância institucional.
É também uma satisfação poder apoiar a instalação de mais um Centro da OMS que integrará essa pequena família de Centros Especializados. Além dos Centros Pan-Americanos, que são centros de excelência técnica em suas áreas de atuação, temos o Centro de Desenvolvimento Humano da OMS em Kobe no Japão, esse novo Centro na Índia, o próprio IARC na França, além de outras iniciativas que podem se reforçar e complementar mutuamente na estrutura regional e global.
Por fim, não dá para a gente esquecer que o que discutimos aqui são avanços na direção do sonho coletivo da “Saúde para Todos”.