O Ministério da Saúde do Brasil, em 20 de janeiro de 2023, declarou emergência em saúde pública de relevância nacional (ESPIN) no território Yanomami e instituiu o Centro de Operações de Emergência (COE-Yanomami) como uma ação de gestão integrada com o objetivo principal de planejar, organizar e recomendar medidas de controle para responder à desassistência sanitária enfrentada pelos povos indígenas que habitam o território Yanomami no estado de Roraima.
O território Yanomami compõe a maior área indígena brasileira, que se estende pela floresta amazônica na fronteira entre Brasil e Venezuela, com mais de 96 mil km². É habitado por diversos povos indígenas, incluindo Yanomami, Sanoma, Yekuana, Xiriana e Xirixana. Este território é cercado por garimpos ilegais, com histórico e relatos de violência contra os povos indígenas, além de registros de altos índices de desnutrição, diarreia e infecção por malária.
Os Yanomami formam uma sociedade de caçadores-agricultores da floresta cujo contato com a sociedade não indígena é relativamente recente. Para os Yanomami, “urihi”, a terra-floresta ou o que chamamos natureza, não é apenas um local inerte para a exploração econômica. Para eles, “urihi” é uma entidade viva, que está envolvida em uma complexa rede de intercâmbios entre seres humanos e não humanos.
A organização dos serviços de saúde indígenas no Brasil se dá por meio do subsistema de atenção à saúde indígena no âmbito do sistema único de saúde, organizado em Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI). No Brasil existem 34 DSEI divididos por critérios territoriais de distribuição demográfica tradicional dos povos indígenas, o que necessariamente não coincide com os limites de estados e/ou municípios onde estão localizadas as terras indígenas.
Cada DSEI, por sua vez, possui uma rede hierárquica de serviços de saúde, sendo Unidades Básicas de Saúde Indígena, Polos Base, Casa de apoio à Saúde Indígena (CASAI) e referências de média e alta complexidade (ambulatório ou hospital especializado).
As CASAIs foram criadas com objetivo de alojar e prestar assistência de enfermagem 24 horas por dia e, na maioria das vezes, estão localizadas em municípios próximos aos territórios indígenas ou em grandes centros que dispõem de serviços de saúde especializados. O DSEI Yanomami é composto por 37 Polos Base, 78 Unidades Básicas de Saúde Indígena, 31.643 indígenas e 366 aldeias situadas na região do interflúvio Orinoco – Amazonas (afluentes da margem direita do rio Branco e esquerda do rio Negro).
Considerando a ESPIN no território Yanomami e a vulnerabilidade social e sanitária dos indígenas, em especial das crianças indígenas em situação de desnutrição, o Ministério da Saúde do Brasil identificou a necessidade de realizar ações imediatas de recuperação e promoção da saúde, incluindo a imunização dos suscetíveis.
As vacinas são seguras e a vacinação é considerada um dos maiores sucessos em saúde pública e de melhor relação custo-efetividade para os sistemas de saúde. A segurança das vacinas é considerada uma preocupação global e um fator determinante no sucesso ou fracasso dos programas nacionais de imunização. Todo programa de imunização deve garantir a segurança das ações de vacinação e estar preparado para atender a qualquer preocupação pública, portanto, um dos componentes essenciais de um sistema de vacinação seguro é a vigilância de ESAVI.
A vigilância dos eventos supostamente atribuíveis à vacinação ou imunização (ESAVI) visa monitorar a ocorrência indesejável ou não intencional, através de um sintoma, doença ou achado laboratorial anormal. Por meio desta vigilância busca-se a detecção, avaliação, compreensão, prevenção e comunicação de qualquer ESAVI, visando a avaliação contínua e sistemática do benefício-risco da vacinação.
O Departamento do Programa Nacional de Imunizações do Brasil (DPNI) fez recomendações especificas para o território Yanomami, visto que essa foi a primeira emergência por desassistência do país. Como parte dessa ação observou-se a necessidade de intensificar e ampliar o monitoramento da segurança da vacinação para a população Yanomami, visando a prevenção de erros de imunização, a detecção e a investigação oportunas de ESAVI.
Diante deste cenário, uma equipe de resposta rápida, composta por profissionais do Programa de Treinamento em Epidemiologia Aplicada aos Serviços do Sistema Único de Saúde (EpiSUS) do Brasil - nível avançado, foi a campo. O EpiSUS, em conjunto com o DPNI, SESAI e DSEI Yanomami, estiveram em campo entre 24 de fevereiro e 23 de março de 2023, com a seguinte missão: realizar ações de vigilância de ESAVI na CASAI Yanomami e avaliar a segurança da vacinação de crianças indígenas em vulnerabilidade alimentar e nutricional. A investigação foi desenvolvida considerando a falta de evidências científicas publicadas sobre a segurança da vacinação dessa população.
Durante a vigilância ativa, foram monitoradas 70 crianças indígenas a partir do início da vacinação na CASAI Yanomami. A equipe de campo conseguiu realizar o monitoramento das crianças por meio de entrevistas com seus responsáveis, com o auxílio de tradutores e agentes de saúde indígena (AIS). Foi verificada a ocorrência de qualquer ESAVI por até 30 dias após a vacinação. Apesar das barreiras linguísticas e culturais, foi possível observar que a maior parte das crianças tinha idade de 1 a 4 anos (74,3%), 41 (58,6%) eram sexo feminino e 35 (50,0%) estavam em situação de desnutrição.
Dentre todos os ESAVI identificados, três casos foram classificados como graves e diagnosticados, na internação hospitalar, com pneumonia e desnutrição. A causalidade entre as vacinas administradas e os ESAVI graves foi avaliada a partir do diagnóstico, condições clínicas, histórico vacinal e comorbidades, e os eventos foram classificados como coincidentes (tipo C segundo a classificação da Organização Mundial da Saúde).
A vacinação de crianças indígenas desnutridas desempenha um papel crucial na promoção da saúde e prevenção de doenças em comunidades vulneráveis. A desnutrição, como uma condição clínica, pode comprometer o sistema imunológico, tornando esses grupos mais suscetíveis a infecções e doenças graves, enfatizando a necessidade da vacinação para a promoção da saúde dessa população. A importância da vacinação vai muito além da prevenção individual, o ato de promover a vacinação, impacta diretamente no coletivo.
A vacinação do povo indígena Yanomami durante o estado de emergência seguem as recomendações específicas, para esta população, discutidas pela câmara técnica assessora em imunização e recomendadas pelo DPNI, com vistas a acelerar a atualização vacinal, otimizar as ações de vacinação e evitar a perda de oportunidade de vacinação em pessoas que estavam em tratamento em polo base ou CASAI. Diante da identificação de crianças em vulnerabilidade alimentar e desnutrição a vacina rotavírus e a vacina Oral da Poliomielite foram contraindicadas. Já a vacina Meningocócica conjugada quadrivalente (Men ACWY), vacina papilomavírus humano (HPV), vacina pneumocócica conjugada 13-valente (VPC13), vacina pneumocócica polissacarídica 23-valente (VPP23), tríplice viral, vacina febre amarela e a hexa acelular, seguem recomendações específicas durante esta ESPIN.
A vigilância ativa de ESAVI, que foi estabelecida na CASAI Yanomami, foi fundamental para evidenciar a segurança da vacinação nessa população. Diante dos resultados obtidos, concluiu-se que que os benefícios de uma vacinação segura superaram o risco de adoecimento das crianças indígenas suscetíveis a doenças imunopreveníveis.
A importância das ações de imunização realizadas em territórios indígenas é reforçada pela necessidade de abordagens culturalmente sensíveis e participativas. A colaboração estreita com lideranças indígenas e AIS, bem como a incorporação e adaptação aos conhecimentos tradicionais foram fundamentais para o sucesso dessas iniciativas.
A emergência em saúde pública de relevância nacional no território Yanomami ainda persiste, por isso as ações de prevenção e controle de doenças, agravos e eventos continuam sendo implementadas visando a promoção da saúde dessa população.
Autores: Roberta Mendes Abreu Silva, Jadher Percio, Carla Dinamerica Kobayashi, Paulo Henrique Santos Andrade, Monica Brauner de Moraes, Cibelle Mendes Cabral, Martha Elizabeth Brasil da Nóbrega, Ana Catarina de Melo Araujo, Amanda de Sousa Rodrigues; e Éder Gatti Fernandes de Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente, Departamento do Programa Nacional de Imunizações; Carolina de Castro Araújo Pacheco, Lais Ferrari dos Santos, e Luis Antônio Alvarado Cabrera de Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente, Departamento de Emergências em Saúde Pública, Coordenação Geral de Vigilância das Emergências em Saúde Pública, Coordenação de Gestão de Risco das Emergências em Saúde Pública, Programa de Treinamento em Epidemiologia Aplicada aos Serviços do SUS (EpiSUS-Avançado); e George Bosco Barros de Araujo, Aiara Cristina Pereira Cogo, Luana Souza Habibe, e Adriana Regina Farias Pontes Lucena de Ministério da Saúde, Secretaria Especial de Saúde Indígena, Coordenação de Vigilância em Saúde Indígena.