• DSEI Alto Rio Purus

Vacinação da população indígena às margens do rio Purus, no Acre: da estratégia para confiança na vacina ao ritual de gratidão

Manoel Urbano, 17 de fevereiro de 2023 – Para chegar à aldeia Boaçu a partir de Rio Branco, capital do estado brasileiro do Acre, são necessárias três horas de caminhão por uma rodovia e cinco horas de barco pelo sinuoso e largo curso do rio Purus. E isso se o rio tiver água suficiente para impulsionar o barco, caso contrário a jornada pode durar quantas horas o Purus “exigir”. Essa aldeia, localizada no município de Manoel Urbano, na Amazônia brasileira, abriga os Madija, uma das 26 etnias que compõem o Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) Alto Rio Purus.
Equipe da OPAS e SESAI fazem trajeto de barco até a aldeia Boaçu

Os DSEI são unidades gestoras vinculadas à Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) do Ministério da Saúde do Brasil e Boaçu é uma das aldeias que têm recebido equipes da SESAI em cooperação técnica com a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), para ações na área de atenção primária e resposta à pandemia de COVID-19.

Essa doença, que afeitou o mundo inteiro, foi motivo de grande preocupação entre os profissionais da saúde que cuidam dos Madija, principalmente a partir do início da transmissão do vírus SARS-CoV-2, em 2020, no Acre. “Lembro que quando reportamos o primeiro caso aqui, eles pegaram suas coisas e correram para o mato”, diz Debneia Soares, médica responsável pelo grupo que atua no DSEI Alto Rio Purus. “Ficaram completamente isolados e não sabíamos onde encontrá-los. Para nós, foi desesperador”.

 

Na mesma linha, a enfermeira Cenira de Oliveira disse que a equipe da Unidade Básica de Saúde responsável pela área não conseguia adentrar a mata da mesma forma que os indígenas. “E quando conseguíamos chegar perto, eles corriam de novo. Encontrávamos apenas vestígios de fumaça de incêndios recentemente extintos”, recorda, acrescentando acreditar que essa foi uma forma natural de proteção. “O distanciamento físico e social, algo que grande parte da humanidade teve dificuldade em fazer, veio naturalmente para essa população indígena”, avalia.

Segundo Carla Niciani, coordenadora do DSEI Alto Rio Purus de 2019 ao início de 2023, o trabalho da SESAI e a cooperação técnica com a OPAS foram fundamentais para reduzir o impacto da doença nos povos indígenas. “Com o início da vacinação contra COVID-19, esse vínculo se fortaleceu ainda mais”, permitindo levar “cuidados primários para as aldeias para que se fortaleçam, respeitando sua cultura, seu habitat e sua própria medicina tradicional”.

Foto de grupo de trabalhadores da saúde

Esse trabalho envolve médicos, enfermeiros, dentistas, psicólogos, agentes de endemias e saneamento, entre outros trabalhadores responsáveis pela parte logística e a própria comunidade. “Procuramos chegar a um consenso para os tratamentos com o pajé de cada aldeia. Há momentos em que temos sucesso e outros em que não. Nós, como representantes da medicina ocidental, não podemos ir contra suas crenças”, avalia Debneia Soares.

O pajé é uma figura considerada importante e respeitada dentro das tribos indígenas do Brasil. Possuidor de grande conhecimento da história da etnia, é o indígena mais experiente em questões de saúde e funciona como um guia de corpo e espírito.

Estratégias para promover a confiança na vacina e o engajamento comunitário

Durante uma visita da SESAI e OPAS à comunidade Madija, em outubro de 2022, foram prestados serviços de atenção primária em geral, oficinas de saúde bucal com crianças e uma palestra sobre prevenção do câncer do colo do útero por conta da campanha internacional “Outubro Rosa”. Houve também vacinação contra HPV, COVID-19 e outras doenças.

 


“Vacinamos muitas crianças e adultos!", comemora ao final de um dia de trabalho o cacique Mariano Madija, nos idiomas português e arawá. Juntamente com outro morador da aldeia, ele representa os Agentes Indígenas de Saúde (AIS), responsáveis pelas ações de aproximação e engajamento com a comunidade. “Os AIS são a porta de entrada das nossas equipes na aldeia e estão em constante treinamento e formação. São imprescindíveis, pois o português é falado apenas por alguns homens na aldeia. As mulheres só se comunicam em arawá”, explica Carla Niciani.

Agente indígena de saúde

Segundo Debneia Soares, o início da imunização foi desafiador. A infodemia – aumento exponencial de informações que se espalham muito rapidamente, como um vírus, e dificultam a identificação de orientações confiáveis – também impactou a aldeia Boaçu. 

“Eles ouvem rádio, estão em contato com parentes de outras regiões e alguns deles usam celular com internet”, conta a médica. “As notícias falsas chegaram aqui, então houve casos de hesitação para ser vacinado por medo de ser exterminado, de ser implantado com um chip ou se transformar em animal. Isso dificultou muito as coisas”, relata.

Ambulancha às margens de território abrangido pelo DSEI Alto Rio Purus

Cenira de Oliveira revela uma das estratégias utilizadas para enfrentar as informações falsas e promover a confiança na vacina: “Como profissionais de saúde, nos organizamos para tomar nossas próprias doses na frente deles. E, mesmo assim, eles vieram e conferiram se o frasco que ia ser aplicado neles era o mesmo (tipo) que nós mesmas colocamos”, pontua a enfermeira.

Essas atividades de vacinação desenvolvidas pelo Brasil foram fortalecidas pela OPAS com recursos mobilizados de doações dos governos do Canadá e dos Estados Unidos.

Mariri, muito mais que uma dança

Mariri, ritual que inclui danças e cantos em roda

A tarde cai e os membros da comunidade Madija expressam a gratidão pela visita das equipes da SESAI e da OPAS por meio do Mariri, ritual típico de povos indígenas do Acre. Inclui danças e cantos em roda, onde todos os presentes devem usar uma coroa feita com folhas de palmeira e pinturas corporais tribais feitas com genipapo, tinta preta extraída de um fruto da floresta amazônica. Cores, ritmo, gratidão e fraternidade, com mais saúde e proteção fornecida pelas vacinas.

Créditos das fotos: Sérgio Valle/OPAS/OMS