Fundação Hospitalar Alfredo da Matta, no Amazonas, é Centro Colaborador da OPAS/OMS para Controle, Treinamento e Pesquisa em Hanseníase nas Américas e referência no Brasil no cuidado a pessoas com Hanseníase
Manaus, 3 de fevereiro de 2025 - Uma enfermidade de baixa transmissão, com tratamento disponível e cura, mas ainda cercada por medo e estigma devido à falta de informação. Trata-se da hanseníase, doença que tem no preconceito um dos maiores obstáculos para o diagnóstico precoce e o início imediato do tratamento, que são essenciais para melhorar a qualidade de vida dos pacientes.
A hanseníase é uma doença infecciosa, crônica, causada pela bactéria Mycobacterium leprae, também conhecida como bacilo de Hansen. A cada ano, cerca de 200 mil novos casos são registrados em 120 países. O Brasil, que concentra cerca de 90% dos casos nas Américas, tem maior incidência nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Segundo o Ministério da Saúde, em 2023, quase metade dos municípios brasileiros (49,9%) notificou ao menos um caso da doença.
No país, todas as etapas, do diagnóstico ao tratamento, são oferecidas gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS). A Fundação Hospitalar Alfredo da Matta (Fuham) é uma das principais referências nacionais no atendimento a pessoas com hanseníase e outras condições dermatológicas. Além disso, é Centro Colaborador da Organização Pan-Americana da Saúde/Organização Mundial da Saúde (OPAS/OMS) para Controle, Treinamento e Pesquisa em Hanseníase nas Américas.
Localizada no cruzamento de duas movimentadas avenidas de Manaus, capital do Amazonas, a Fuham atua há 70 anos oferecendo acolhimento, diagnóstico, tratamento e acompanhamento contínuo aos pacientes.
Diagnóstico precoce
A hanseníase é uma das doenças mais antigas da história humana, marcada por estigma, abandono e exclusão social. Até a década de 1980, no Brasil, os pacientes diagnosticados eram compulsoriamente internados em hospitais-colônia e afastados do convívio familiar e social como forma de controle da doença. Em Manaus, esses pacientes eram encaminhados para a Colônia Antônio Aleixo, localizada na Zona Leste da cidade, a cerca de 20 km em linha reta do centro.
Hoje, sabe-se que, apesar da hanseníase ser transmitida por meio de gotículas (secreção nasal, fala, tosse ou espirro), possui baixa transmissibilidade. “É necessário um contato íntimo e muito prolongado com pessoas com a doença ativa, que ainda não iniciaram o tratamento, para a transmissão da doença”, explica o consultor em tuberculose e hanseníase da OPAS e da OMS, Kleydson Andrade.
Maria Valcelane Almeida Guedes, de 53 anos, acredita ter contraído o bacilo de Hansen ainda na infância, por volta dos 7 anos. Os primeiros sinais, como manchas escuras e falta de sensibilidade na pele, não foram notados por ela e sua família, que viviam no município de Coari, a cerca de 380 quilômetros de Manaus, em um trajeto que pode levar de 17 a 28 horas em uma embarcação comercial.
“Porque, até então, na comunidade onde a gente morava e na cidade para onde a gente ia, o médico dizia que era reumatismo no sangue, por causa de uma mancha que apareceu aqui. Era quase do tom da minha pele, mas, quando eu pressionava, ela ficava meio arroxeada. E teve outra coisa que precisei contar: quando a mamãe me batia, eu não sentia desse lado. Apanhava a ponto de ficar roxo, mas não sentia”, relatou. Na simplicidade de uma infância afastada dos grandes centros nos anos 1970, Maria Valcelane relembra sinais importantes que, na época, passaram despercebidos até pelos profissionais de saúde.
Na hanseníase, os primeiros sintomas incluem manchas claras ou escuras, além de nódulos na pele, que podem causar lesões e perda de sensibilidade na área afetada. Outros sinais são fraqueza muscular e formigamento nas mãos e pés.
Quando não tratada precocemente, a doença pode levar a incapacidades progressivas e permanentes, incluindo deformidades, redução da mobilidade e até cegueira. Maria Valcelane conhece bem essas consequências. Entre os 12 e 13 anos, os dedos das mãos começaram a se curvar, formando o que é conhecido como "mão em garra", e ela perdeu a capacidade de levantar e sustentar a parte frontal dos pés, condição chamada de "pé caído".
“Foi aí que fizeram os testes e enviaram para Manaus. O resultado foi encaminhado para Coari, confirmando que eu era portadora do bacilo”, contou Maria Valcelane. Ela relembra que o diagnóstico só foi possível graças a uma equipe médica de fora do município, que esteve lá temporariamente e conseguiu identificar sua condição.
“Uma vida toda de tratamento”, ressalta. A fase medicamentosa durou cerca de um ano, mas, devido às incapacidades já presentes, Maria Valcelane precisou passar por diversos procedimentos, como cirurgias, implantes e uso de próteses, para alcançar uma melhor qualidade de vida.
Foi nesse contexto que ela conheceu a Fundação Hospitalar Alfredo da Matta, instituição que frequenta há 17 anos. Atualmente, Maria Valcelane reside em Manaus e, devido às condições de saúde que ainda requerem atenção, faz mensalmente o trajeto de mais de duas horas de ônibus para chegar à Fundação.
O caminho para o tratamento
A experiência de Júnior Oliveira de Lima, de 49 anos, foi diferente. Em 2023, ao perceber dormência nas pernas e manchas nos braços, procurou um serviço de saúde. O primeiro médico que o atendeu suspeitou de hanseníase e o orientou a buscar atendimento na Fuham.
Ao chegar à Fundação, Júnior passou pela triagem e, após a identificação dos sinais, foi encaminhado à área especializada em hanseníase para avaliação clínica e realização de exames que confirmaram o diagnóstico.
“Eu cheguei aqui por volta das sete da manhã e só saí quase às três da tarde. Passei pela recepção, fui encaminhado para a triagem, depois para a médica, e fiz fisioterapia aqui. Fiquei na área do curativo, onde cuidaram muito bem do ferimento que eu tinha”, relembra Júnior. Dois anos depois, continua retornando para acompanhamento e orientações sempre que necessário.
Assim como aconteceu com Júnior, quem chega à Fundação pela primeira vez em busca de atendimento para problemas dermatológicos encontra a recepção logo à direita, a poucos metros da entrada principal.
Homens, mulheres, crianças e idosos circulam pelo espaço, cada um com um objetivo: alguns buscam diagnóstico, outros acompanham o tratamento, enquanto há aqueles que retornam para serviços de pós-tratamento, como fisioterapia, consultas com oftalmologistas ou atendimento na oficina da Fundação, que oferece palmilhas e outros recursos para melhorar a qualidade de vida de quem convive com sequelas da hanseníase.
Após o registro na recepção, o paciente é encaminhado para o serviço de triagem, também localizado no lado direito do espaço. Lá, são feitas as primeiras observações sobre as demandas apresentadas, direcionando cada pessoa ao atendimento especializado necessário.
“A primeira coisa é a avaliação visual, observar o corpo para uma análise dermatológica. Ouvimos as queixas e verificamos os locais relatados. Estamos sempre atentos ao que o paciente menciona e ao que identificamos. Procuramos por manchas, dormência, perda de pelos, dores ou falta de força. Analisamos desde os pés até o couro cabeludo”, explica a técnica de enfermagem Maria Célia Pereira Cesário, que atua na Fundação há mais de 20 anos.
Na triagem, são realizados testes para avaliar a sensibilidade tátil, dolorosa e térmica da pele. No primeiro teste, de sensibilidade térmica, a pele do paciente é tocada com tubos contendo água quente ou fria para avaliar a percepção de temperatura na região examinada.
Em seguida, a profissional toca a pele do paciente com objetos pontiagudos, como um alfinete, e um chumaço de algodão. Para cada estímulo, o paciente deve descrever a sensação e informar se sente dor ou desconforto.
Esses testes são fundamentais, pois a hanseníase afeta principalmente a pele e os nervos.
Após as primeiras avaliações na triagem, caso haja suspeita de hanseníase, o paciente é encaminhado para outra área da Fundação, onde passará por exames complementares e a confirmação do diagnóstico por um médico.
No chão do salão principal da Fuham, listras de diferentes cores indicam os caminhos para a continuidade da assistência. Nos casos de hanseníase, a indicação é a listra vermelha.
Ao chegar na outra área, os pacientes passam por testes para avaliar um dos sinais clássicos da hanseníase: a "mão em garra". A profissional de saúde examina o grau de comprometimento dos nervos dos braços e das mãos do paciente.
Também é realizada a baciloscopia, um exame no qual o profissional faz uma raspagem na orelha e no cotovelo para identificar a presença do bacilo de Hansen. O resultado é obtido em cerca de 24h pela Fundação.
O diagnóstico definitivo é feito pelo médico após a avaliação clínica dos sinais e sintomas. A baciloscopia complementa o diagnóstico, ajudando a determinar a forma clínica da doença e orientando o tempo necessário de tratamento.
O tratamento para a hanseníase dura de seis a 12 meses, a depender da forma clínica. Ele é composto pela associação de três antimicrobianos: rifampicina, dapsona e clofazimina. Essa combinação é chamada de Poliquimioterapia Única (PQT-U) e está disponível nas versões adulta e infantil.
Essa associação ajuda a reduzir a resistência medicamentosa do bacilo, que ocorre com frequência quando se utiliza apenas um medicamento. Logo no início do tratamento, a doença deixa de ser transmitida. Familiares, colegas de trabalho e amigos do paciente, além de apoiarem o tratamento, também devem ser examinados.
Devido às incapacidades que a hanseníase pode causar, é comum que os pacientes continuem o acompanhamento na Fundação, realizando exames periódicos, fisioterapia, consultas oftalmológicas, cirurgias, além de ajustes nos calçados e outros cuidados especializados.
A Fuham também oferece um grupo de autocuidado, que orienta os pacientes sobre como prevenir lesões, evitar a progressão de incapacidades e mutilações. Mesmo após a cura, os pacientes que ficaram com lesões ou perda de sensibilidade nos membros precisam tomar alguns cuidados.
"O problema dessa doença é o ferimento. Você tem que tomar o maior cuidado para não se machucar, principalmente nas áreas afetadas, que perderam a sensibilidade, porque isso dificulta a cicatrização", relata Mario Gomes de Oliveira, de 56 anos, diagnosticado com hanseníase aos 20 e, desde então, frequenta a Fuham.
“Há também casos de pacientes que chegam com amputações. Quando se trata de curativos, entra a parte da ortopedia, que sempre trabalha em conjunto com a fisioterapia. Esse trabalho é bem integrado”, explica Jaqueline Mendes, subgerente de fisioterapia da Fundação.
Adaptações nos calçados para pessoas que tiveram hanseníase podem corrigir a pisada, absorver impactos e reduzir o risco de lesões.
Instituição referência e Centro Colaborador da OPAS/OMS
A história da Fundação Alfredo da Matta começou em 1955, como uma Casa de Trânsito, para onde as pessoas com hanseníase eram levadas para serem registradas e depois encaminhadas para o Hospital-Colônia Antônio Aleixo, onde eram compulsoriamente isolados da sociedade.
Com o passar do tempo, a instituição passou a coordenar e executar atividades relacionadas ao controle da doença no estado do Amazonas, bem como a realizar exames dermatológicos de grupos populacionais visando a busca ativa de casos de hanseníase tanto na capital como no interior. Também passou a treinar estudantes de Medicina e outros profissionais da saúde para realizar o diagnóstico e o tratamento, além de supervisionar unidades de saúde da capital e do interior, expandindo as ações de controle da hanseníase. Setenta anos depois, a Fundação é referência em toda a linha de cuidado do paciente com hanseníase e recebe uma média de 300 pacientes por dia.
“Hoje, nós trabalhamos com 50% de pacientes regulados, encaminhados após passarem por outro serviço do SUS e 50% é porta aberta, ou seja, tem a necessidade e vem. Porque as doenças dermatológicas agudas precisam de um pronto atendimento. E é por isso que a gente deixa 50% de porta aberta para receber essa população”, explica o diretor-presidente da Fuham, Carlos Alberto Chirano Rodrigues.
O presidente também relata o trabalho de busca ativa de pacientes, em municípios do interior. “Em todos os municípios que visitamos, diagnosticamos entre 4, 6, até 10 casos. Mesmo aqui, sendo um centro de referência, esses pacientes não aparecem espontaneamente. Se eu saio daqui, vou para a comunidade e faço um mutirão, consigo identificar casos. Se quisermos controlar a progressão da doença, a solução é a busca ativa”, destaca.
A responsável pelo departamento de Controle de Doenças e Epidemiologia da Fundação Alfredo da Matta e coordenadora do Programa Estadual de Hanseníase do Amazonas, Valderiza Lourenço Pedroza, comenta que a hanseníase não escolhe população, sexo nem idade. No entanto, por ser uma doença socialmente determinada, acaba atingindo as populações mais pobres e em situações de vulnerabilidade. “Verificamos que o maior número de casos ocorre entre a população mais carente, com menor nível de escolaridade".
Para chegar às populações em territórios mais remotos, tendo em vista a extensão geográfica do estado do Amazonas, a Fundação apoia a estrutura de telessaúde do estado, com teleconsultas e reuniões entre especialistas, para propor alterações nos tratamentos e medicamentos. “Além do telessaúde, oferecemos treinamentos na modalidade de Ensino a Distância (EAD). Sempre que houver dúvidas ou necessidade de agendamento, os profissionais utilizam o link para preencher os dados do paciente, relatar brevemente o caso e anexar fotos para agilizar o processo”, detalha Valderiza. A iniciativa já chegou a 54 dos 62 municípios do estado do Amazonas.
Desde 1998, a Fuham está credenciada como Centro Colaborador da OPAS/OMS para Controle, Treinamento e Pesquisa em Hanseníase para as Américas. Coordenado pela médica dermatologista Silmara Navarro Perini, o Centro Colaborador oferece estágio para médicos do Brasil e de países vizinhos, disponibiliza exames específicos para hanseníase, como o PCR para investigação de resistência medicamentosa, além de promover treinamentos presenciais e online. “Mostramos todo o aspecto clínico da doença, aspectos de prevenção, como prevenir as deformidades, o exame dermatológico e o exame neurológico”, comenta.
A Fundação também atua com pesquisa e inovação, participando atualmente de dois estudos internacionais. Um deles para a padronização fotográfica de pacientes durante o tratamento: “Foi a primeira vez que se desenvolveu um projeto desse tipo, no sentido de que as fotos daqui serão iguais às fotos feitas na Índia. Esse projeto já está bem adiantado, nós já estamos com oito meses”, explica o chefe do Departamento de Ensino e Pesquisa da Fundação, Sinésio Talhari.
O outro estudo está na fase de ensaio clínico de um novo medicamento que pretende contribuir para reduzir o tempo de tratamento da doença para seis meses. A pesquisa deve durar três anos e está sendo realizada em parceria com outras instituições do Brasil e da Índia. “Existe uma perspectiva bem interessante, bem real, de o tratamento das formas mais graves de hanseníase ser reduzido com uma eficácia superior a 95%”.
Estigma e discriminação
“Quando a empresa descobriu o diagnóstico, automaticamente me afastou. A empresa nunca me deu apoio de nada. Quando eu falava dessa situação, eu sentia assim, um desconforto, de as pessoas se afastarem pensando que era contagiosa, mas eu explicava que tinha tomado remédio e não tinha mais transmissão”. O relato de José Hernandes Oliveira Vasconcelos, de 56 anos, que descobriu a hanseníase há seis anos, quando começou a chegar em casa após o trabalho com mãos e pés queimados, sem ter sentido o momento da lesão, não é um caso isolado.
Pessoas afetadas pela hanseníase são frequentemente vítimas de discriminação. A falta de informação sobre as formas de transmissão e a possibilidade de cura, somada às limitações causadas pela doença, contribui para o estigma. Isso tem efeitos negativos no acesso ao diagnóstico e nos resultados do tratamento.
“O pessoal tem muito preconceito sobre isso, quando a pessoa fala ‘eu tive essa doença’, você percebe que as pessoas já olham para você com receio, com indiferença”, reforça Mario Gomes de Oliveira.
Para combater esse estigma, é fundamental a visibilização das pessoas afetadas, de seus familiares, da comunidade, dos profissionais de saúde e de outros setores, a fim de ampliar o conhecimento sobre a hanseníase e desconstruir medos e equívocos associados à doença.
Desde 1995, o Brasil tem dado ênfase a uma ressignificação social da doença. Por meio da aprovação da Lei nº 9.010, o termo “lepra” e seus derivados não podem mais ser utilizados na linguagem empregada nos documentos oficiais da Administração centralizada e descentralizada da União e dos estados, como forma de retirar uma linguagem considerada no país discriminatória contra as pessoas acometidas pela hanseníase. Além disso, práticas discriminatórias podem ser registradas por meio da linha telefônica Disque Saúde 136, do Ministério da Saúde do Brasil.
Conhecer e Cuidar, de Janeiro a Janeiro
Anualmente janeiro é reconhecido como o mês de enfrentamento da hanseníase, com o objetivo de promover a conscientização, estimular diálogos intersetoriais, mobilizar recursos para ações concretas e dar visibilidade às pessoas atingidas pela doença.
Em 2025, o tema da campanha do Ministério da Saúde do Brasil é “Hanseníase, Conhecer e Cuidar, de Janeiro a Janeiro” e tem foco em reforçar as ações contínuas de informação e conscientização sobre a doença ao longo de todo o ano. A iniciativa busca disseminar conhecimento sobre a hanseníase, além de enfrentar os estigmas associados à doença e fomentar o enfrentamento das barreiras sociais que dificultam seu diagnóstico e tratamento, com a ajuda de estados e municípios.
A hanseníase integra o Programa Brasil Saudável que tem o objetivo de eliminar doenças determinadas socialmente – isto é, doenças que afetam mais ou somente pessoas em áreas de maior vulnerabilidade social. A iniciativa está alinhada às diretrizes e metas da Agenda 2030 – Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e à iniciativa da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) para a eliminação de doenças nas Américas. As ações do programa vão além do setor saúde, dialogando com outros setores do governo relacionados à moradia, renda, ao acesso ao saneamento básico e à educação, entre outras políticas públicas.