Com microplanejamento e ação conjunta de vacinação, Brasil e Guiana reforçam prevenção da febre amarela em área de fronteira

Boa Vista, 10 de julho de 2024 – Apenas um rio separa as cidades de Bonfim, no Brasil, e Lethem, na Guiana, sendo possível atravessar a fronteira entre os dois países por uma ponte em poucos minutos. Essa proximidade não é apenas geográfica, as populações das duas localidades compartilham muitas vivências, há um grande fluxo de pessoas que vivem no Brasil indo à Guiana e um grande fluxo inverso, por diversos motivos, entre eles comércio e trabalho.

Assim como boa parte das pessoas transita constantemente entre os dois países, as doenças também não conhecem fronteiras. Com essa premissa e para combater a febre amarela em seus territórios, Bonfim e Lethem articularam uma atividade conjunta de intensificação da vacinação, que foi realizada de 6 a 15 de maio.

O coordenador de Imunização do município de Bonfim, Cleudison Cabral, conta que a ação foi pensada após o registro, em 2024, de dois casos de febre amarela oriundos da Guiana. “Sabemos que, pelo fato de as pessoas que moram na Guiana terem livre acesso ao Brasil e as pessoas que vivem no Brasil também terem acesso à Guiana, o problema guianense não deixa de ser um problema nosso. Precisávamos trabalhar juntos para imunizar tanto as pessoas de lá, quanto as pessoas daqui. Então fizemos reuniões para traçar metas e alcançar pessoas não vacinadas contra febre amarela”. 

Em abril de 2024, o Ministério da Saúde do Brasil doou 30 mil doses de vacinas contra febre amarela à Guiana, que foram utilizadas na atividade de vacinação em Lethem, capital da Região 9, Upper Essequibo-Upper Tacutu.

O oficial regional de saúde da região na Guiana, Cerdel Mc Watt, lembra que é necessário que as populações que vivem na área da fronteira estejam com alta cobertura vacinal. “Se conseguirmos aumentar o status de vacinação de ambos os lados, poderemos produzir o que chamamos de imunidade de rebanho, criando um ambiente seguro e, claro, podendo erradicar algumas dessas doenças evitáveis por vacinação”.

Enfermeira aplica vacina em aluno da Escola Municipal Oscar Fernando Costa, em Bonfim, Roraima. Foto: OPAS/OMS/Karina Zambrana

 

Microplanejamento

Cerdel Mc Watt também falou que o país tem interesse em apreender com a experiência do Brasil no microplanejamento.  “O microplanejamento é a força motriz por trás de ações que vão nos ajudar a controlar doenças em nossa região”, acrescenta. 

A iniciativa de vacinação conjunta faz parte do microplanejamento de atividades de vacinação de alta qualidade na cidade de Bonfim, que fica a duas horas da capital do estado de Roraima, Boa Vista. Visando imunizar o maior número de pessoas possível, o município implementou a metodologia proposta pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), que tem objetivo de recuperar as altas coberturas vacinais do programa de rotina.

“O microplanejamento é uma metodologia que promove uma sistematização do processo de trabalho de vacinação desde o nível local até o nível nacional”, explica Flávia Cardoso, consultora de imunização da OPAS e da Organização Mundial da Saúde (OMS). 

Uma das principais características do processo de microplanejamento é que o desenvolvimento ocorre de forma ascendente. “Começa de baixo para cima, com o profissional da ponta, que trabalha executando aquela ação e que conhece sua população, áreas de difícil acesso, necessidades de logística, de transporte, recursos humanos, recursos financeiros e o número de doses de vacina e seringas necessários. O interessante é que esse processo coloca todos os profissionais em articulação, imunização e atenção primária, que são os executores de linha de base dessa ação de vacinação”, pontua Flávia Cardoso.

Profissional de saúde do município de Bonfim preparando a aplicação de dose da vacina contra febre amarela. Foto: OPAS/OMS/Karina Zambrana

 

Náiade Bezerra, apoiadora do Núcleo Estadual do PNI em Roraima, ressalta que o trabalho articulado entre estas áreas é essencial para que o microplanejamento seja bem-sucedido. “Não tem como trabalhar de forma separada. A atenção básica é importante porque é o agente comunitário de saúde que vai até a casa das pessoas, que conhece a situação vacinal e sabe dizer o porquê de algumas delas não terem chegado à sala de vacinação”.

Em abril, foi realizada uma oficina em Boa Vista sobre microplanejamento e vigilância de febre amarela. O objetivo foi fortalecer as equipes locais na implementação da metodologia de microplanejamento para aumento das coberturas vacinais locais e das medidas de controle de forma oportuna frente a casos suspeitos e confirmados de febre amarela.

A capacitação foi promovida pelo Ministério da Saúde do Brasil e contou com a presença de profissionais do Ministério dos Povos Indígenas do país, das equipes locais de Imunização, Atenção Primária e Saúde Indígena dos municípios do estado de Roraima e apoio logístico da OPAS, com financiamento do governo do Canadá.  

Articulação com a saúde indígena

Náiade Bezerra também destaca a importância do trabalho de vigilância epidemiológica, para as doenças não se alastrarem, bem como a articulação com a saúde indígena. “Em Bonfim, 50% da população é indígena e o Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) Leste está trabalhando junto conosco. Com essa integração se fortalecendo, temos a certeza de que a qualidade do trabalho de vacinação continua melhorando”. 

Mãe e filha da etnia Macuxi, da comunidade Campinhos (Cantá, Roraima), vão até Unidade Básica de Saúde para receber vacina contra febre amarela. Foto: OPAS/OMS/Karina Zambrana

 

O Distrito Sanitário Especial Indígena Leste atende 357 comunidades indígenas localizadas em 11 municípios e enfrenta desafios para levar as vacinas a todos os lugares. “O DSEI Leste atende não só por via terrestre, mas também por vias fluvial e aérea. Hoje, nós temos como principal dificuldade as regiões de difícil acesso, que são por via aérea”, revela Zelandes Patamona, coordenador do DSEI Leste.

Ao elaborar o microplanejamento de vacinação, as equipes devem considerar características geográficas, demográficas e socioculturais da população a ser imunizada.

Criança da etnia Macuxi, na comunidade de Campinhos (Cantá, Roraima), mostrando caderneta de vacinação atualizada. Foto: OPAS/OMS/Karina Zambrana

 

Jailcy Sousa, referência técnica de imunização do DSEI Leste, ressalta a importância da articulação com pessoas que possuem influência entre comunidades indígenas para vacinar o maior número possível de pessoas. “Trabalhamos com as lideranças comunitárias para adentrar nas comunidades e realizar a imunização. Cada região tem suas peculiaridades. Algumas comunidades, por exemplo, não aceitam a vacina contra COVID-19. Precisamos conversar com as lideranças, os tuxauas e os pajés para desmistificar tudo isso. É preciso haver essa interação entre a equipe, as lideranças, os pajés, porque eles são o foco".

Vacinação contra febre amarela na Casai Yanomami, em Boa Vista. Foto: OPAS/OMS/ Karina Zambrana

 

As equipes do DSEI Yanomami também foram capacitadas em microplanejamento. Helencarla Ferreira, apoiadora da OPAS no Distrito Sanitário Especial Indígena, diz que as capacitações aconteceram em Belém, no estado do Pará, e Brasília, no Distrito Federal. “Quando o microplanejamento nos foi apresentado, tivemos que adaptar as planilhas propostas de acordo com a realidade do DSEI e contamos com o apoio da OPAS para isso. Agora o microplanejamento do DSEI Yanomami é um modelo para os demais DSEIs”. 

Após a implementação do microplanejamento é possível perceber uma melhora na busca pela vacinação na Casa de Saúde Indígena (Casai) Yanomami, em Boa Vista. Silene Martins, responsável pela sala de vacinas, relembra que o local estava fechado há três anos e, em 2023, foi reativado. “A princípio, vacinávamos apenas nas comunidades. Com a reativação da sala, saímos para fazer a busca ativa, mas muitos indígenas têm vindo [voluntariamente] até a sala para pedir vacina”, finaliza.

O microplanejamento de vacinação é uma metodologia simples e de baixo custo, replicável e adaptável para os mais diversos contextos. É dividida em quatro etapas, sendo elas a análise da situação de saúde, o planejamento e programação, o seguimento e supervisão e a avaliação e monitoramento das atividades de vacinação.

Criança da etnia Yanomami sendo vacinada contra febre amarela na Casai Yanomami, em Boa Vista. Foto: OPAS/OMS/Karina Zambrana

 

Em 2023, a OPAS treinou profissionais do Ministério da Saúde do Brasil em microplanejamento de vacinação. O objetivo é que eles atuem como multiplicadores dessa metodologia nos estados que, por sua vez, devem capacitar os municípios.

No mesmo ano, a Organização apoiou o Ministério na elaboração do “Manual de microplanejamento para as atividades de vacinação de alta qualidade”, documento que serve de apoio aos municípios na implementação da metodologia. Além disso, foram capacitados profissionais de dois estados pilotos, Rio Grande do Norte e Amazonas. A OPAS também doou insumos da rede de frio, como refrigeradores e caixas térmicas para vacinas, ao estado de Roraima.

Para Emerson Capistrano, assessor técnico do Programa Nacional de Imunização (PNI) em Roraima, as áreas de fronteira merecem uma atenção especial. “É necessário elevar as coberturas vacinais e utilizar o microplanejamento para identificar as áreas onde não há uma boa cobertura, onde é preciso reforçar a vacinação”.

O assessor técnico também ressalta que o microplanejamento atende à necessidade de mapeamento principalmente por meio da Estratégia Saúde da Família e agentes comunitários de saúde. “É um instrumento muito eficaz e extremamente importante, que traz um novo paradigma para a saúde, planejamento da vigilância e promoção da saúde.”

Halisson Rezende, coordenador da Atenção Básica do município de Bonfim, reforça o protagonismo da atenção primária à saúde no processo do microplanejamento. “Nós tivemos o cuidado de fazer o trabalho juntamente à vigilância em saúde, para colocar os agentes comunitários de saúde e os agentes de combate às endemias trabalhando juntos para alcançarmos toda a população. Há também a questão das pessoas que moram longe, que não têm acesso à saúde. Temos que buscar equidade, saúde para todos”, comenta.

As ações de microplanejamento foram fortalecidas com recursos mobilizados de doações dos governos do Canadá e dos Estados Unidos.

Caixas térmicas para transporte de vacinas doadas pela OPAS ao estado de Roraima. Foto: OPAS/OMS/Karina Zambrana

 

Estratégias de comunicação

Bonfim possui mais de 13 mil moradores. Por ser pequena, a cidade brasileira recorreu a uma forma simples de chamar as pessoas para vacinação, mas com um grande alcance: os carros de som, que tocam vinhetas incentivando todos a se vacinarem.

O município também costuma promover ações de imunização em locais de grande aglomeração, como escolas, igrejas e comércios. Com ajuda dos agentes comunitários de saúde, os profissionais de imunização fazem ainda a busca ativa de pessoas não vacinadas.

Atividade de vacinação na Escola Municipal Oscar Fernando Costa, em Bonfim. Foto: OPAS/OMS/Karina Zambrana

 

Segundo Rosângela Araújo, agente comunitária de saúde no município de Bonfim, dois dos principais desafios para vacinar a população têm sido as informações falsas e a falta de acesso a áreas remotas. “Há pais ainda muito resistentes à vacinação, pelo fato de não conhecerem bem a vacina e receberem muitas fake news pelo celular. Temos que ir até eles e convencê-los”.

Como forma de superar essas dificuldades, agentes comunitários de saúde fazem o acompanhamento da população, procurando as pessoas para saber quais vacinas ainda precisam ser aplicadas. “Vamos atrás para saber por que não levaram as crianças para vacinar. Também trabalhamos com comunidades indígenas, fazendo campanhas de vacinação. Temos carro, temos moto e vamos buscar as pessoas onde estiverem”, explica Rosângela Araújo.

Rosângela Araújo, agente comunitária de saúde, confere cadernetas de vacinação de alunos da Escola Municipal Oscar Fernando Costa, em Bonfim. Foto: OPAS/OMS/Karina Zambrana